A Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade vem publicamente manifestar-se sobre o lançamento do Programa Cuida Mais Brasil e endossar as preocupações apresentadas pelas entidades Frente pela Vida e Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
Identificamos, pela recente apresentação do Programa, uma proposta não compatível com todo o desenvolvimento do modelo assistencial baseado na Estratégia Saúde da Família (ESF), que por meio de sua equipe multidisciplinar com médicas(os) e enfermeiras(os) generalistas, agentes comunitárias(os) e técnicas(os)/auxiliares de enfermagem, realizam o cuidado da população orientados pelos atributos da Atenção Primária, zelando pela integralidade, universalidade e equidade. Esse modelo, como já afirmado pelas entidades acima elencadas, demonstra melhorias significativas em indicadores de saúde, inclusive aqueles relacionados à saúde materno infantil, evidenciadas cientificamente (1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11) .
A Atenção Materno Infantil (acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil, atenção às doenças prevalentes da infância, Triagem Neonatal, pré-natal, vacinação, prevenção e rastreio do câncer, atenção à Saúde Reprodutiva, entre outros), realizada pelas equipes da ESF, está inserida no cuidado integral e longitudinal, com abordagens familiar e comunitária, e colabora efetivamente com a melhoria das condições de vida e saúde da população.
Desde a década de 1990, a enfermagem vem atuando na reorientação do modelo assistencial, pela trajetória da ESF, com médicas(os) de diferentes especialidades que foram aderindo ao trabalho. Assim como, vem acompanhando e participando dos investimentos realizados em prol da formação de especialistas em Medicina de Família e Comunidade. Desta forma, nós, da Enfermagem de Família e Comunidade, reconhecemos a importância da inserção de médicas(os) de Família e Comunidade na equipe. Assim como, reconhecemos que outras especialidades médicas, incluindo os pediatras e ginecologistas-obstetras, são relevantes para o matriciamento e cuidado compartilhado realizado pelo Núcleo de Apoio à Saúde da Família, atualmente, com sua nomenclatura alterada para Núcleo Ampliado pela Política Nacional de Atenção Básica e sem financiamento do Ministério da Saúde.
A proposta de um atendimento pautado em especialidades, indicada pelo Programa Cuida Mais Brasil, retoma um modelo assistencial já superado e interfere no princípio do cuidado integral, conquistado pelo trabalho compartilhado entre médicas(os) e enfermeiras(os) generalistas, junto aos demais trabalhadores da equipe de saúde da família e o NASF. Assim, não concordamos com o estabelecimento de propostas que não são compatíveis com o conhecimento e a experiência acumulada no país, internacionalmente reconhecidas e que irão causar confundimento na população.
Ademais, o Programa Cuida Mais Brasil, além de retroceder o modelo assistencial cuidadosamente pensado para o desenvolvimento da APS, propõe um financiamento muito aquém para alocar pediatras e ginecologistas-obstetras, considerando o contexto nacional que envolve déficit desses dois especialistas, com concentração nas grandes capitais, tornando sua fixação extremamente difícil nas diferentes regiões do Brasil 12 .
Deste modo, não podemos abrir mão de investimentos que promovam a continuidade do aumento da cobertura da ESF em todo território nacional, inclusive do NASF e da Saúde Bucal, procurando estabelecer a equidade necessária na relação entre a população e equipes, conforme os critérios de vulnerabilidade social dos territórios. Entendemos a importância do fortalecimento e incentivo à APS com propostas que mantenham suas diretrizes e princípios e que não alterem o modelo de saúde vigente no país, mas sim, que possam aperfeiçoá-lo.
Queremos, portanto, reafirmar que o caminho para a consolidação do Sistema Único de Saúde é o fortalecimento da ESF por meio da restauração das políticas voltadas para a gestão e financiamento da Atenção Primária, com vistas a retomada de um sistema de saúde forte o suficiente para restabelecer a saúde da população frente ao contexto atual, envolvendo também as consequências da pandemia, exatamente como entidades de grande relevância acadêmica e política apontaram nas recentes Notas Técnicas
Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2022
Gestão 2021-2024
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Referências
1. Macinko, J. – ATENÇĀO PRIMARIA À SAÚDE: ESTRATÉGIA CHAVE PARA A SUSTENTABILIDADE DO SUS BRASIL – http://isags-unasur.org/wp-content/uploads/2018/05/aps2018macinko-1.pdf
2. Russo LX, Scott A, Sivey P, Dias J. Primary care physicians and infant mortality: Evidence from Brazil. PLoS One. 2019;14(5):e0217614. Published 2019 May 31. doi:10.1371/journal.pone.0217614
3. Bastos ML, Menzies D, Hone T, Dehghani K, Trajman A. The impact of the Brazilian family health strategy on selected primary care sensitive conditions: A systematic review. PLoS One. 2017 Aug 7;12(8):e0182336. doi: 10.1371/journal.pone.0182336. Erratum in: PLoS One. 2017 Dec 7;12 (12 ):e0189557. PMID: 28786997; PMCID: PMC5546674
4. Hone T, Rasella D, Barreto ML, Majeed A, Millett C. Association between expansion of primary healthcare and racial inequalities in mortality amenable to primary care in Brazil: A national longitudinal analysis. PLoS Med. 2017 May 30;14(5):e1002306. doi: 10.1371/journal.pmed.1002306. PMID: 28557989; PMCID: PMC5448733
5. Monteiro, Carlos Augusto et al. Causas do declínio da desnutrição infantil no Brasil, 1996-2007. Revista de Saúde Pública [online]. 2009, v. 43, n. 1 [Acessado 6 Janeiro 2022] , pp. 35-43. Disponível em: . Epub 06 Ago 2010. ISSN 1518-8787. https://doi.org/10.1590/S0034–89102009000100005.
6. Macinko J, Guanais FC, de Fátima M, de Souza M. Evaluation of the impact of the Family Health Program on infant mortality in Brazil, 1990-2002. J Epidemiol Community Health. 2006;60(1):13-19. doi:10.1136/jech.2005.038323
7. Rasella D, Harhay MO, Pamponet ML, Aquino R, Barreto ML. Impact of primary health care on mortality from heart and cerebrovascular diseases in Brazil: a nationwide analysis of longitudinal data. BMJ. 2014 Jul 3;349:g4014. doi: 10.1136/bmj.g4014. PMID: 24994807; PMCID: PMC4080829.
8. Cabral NL, Franco S, Longo A, et al. The Brazilian Family Health Program and secondary stroke and myocardial infarction prevention: a 6-year cohort study. Am J Public Health. 2012;102(12):e90-e95. doi:10.2105/AJPH.2012.301024
9. Alfradique, Maria Elmira et al. Internações por condições sensíveis à atenção primária: a construção da lista brasileira como ferramenta para medir o desempenho do sistema de saúde (Projeto ICSAP – Brasil). Cadernos de Saúde Pública [online]. 2009, v. 25, n. 6 [Acessado 6 Janeiro 2022] , pp. 1337-1349. Disponível em: . Epub 02 Jun 2009. ISSN 1678-4464. https://doi.org/10.1590/S0102– 311X2009000600016.
10. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da família no Brasil : uma análise de indicadores selecionados : 1998-2005/2006 / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica – Brasília : Ministério da Saúde, 2008. 200 p. : il. – (Série C. Projetos, Programas e Relatórios)
11. Mendes, EV et al. A Construção Social da Atenção Primária à Saúde. 2ª Edição. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde – CONASS, 2019. [Acessado 7 Janeiro 2022]. Disponível em: .
12. Scheffer M, Cassenote A, Guilloux AGA, Biancarelli A, Miotto BA, Mainardi GM. Demografia médica no Brasil 2018. São Paulo: FMUSP, CFM, Cremesp; 2018 [acesso em 08 janeiro 2022]. Disponível em: Disponível em: .
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